quinta-feira, 15 de julho de 2010

Primeiro organismo controlado por genoma artificial prova que o DNA é realmente a receita química da vida

Quando anunciou no dia 20 do mês passado a criação da primeira linhagem de células viáveis de um ser vivo controlada por um genoma totalmente sintetizado em laboratório, o cientista norte-americano Craig Venter não economizou palavras para descrever o feito. Lembrou a todos que, nunca antes na história deste mundo, a humanidade tinha sido apresentada a uma criatura desprovida de ancestrais. Sem pais. 
A mensagem era clara: a Mycoplasma mycoides JCVI-syn1.0 – nome dado à variedade dessa bactéria cujo DNA fora produzido por químicos de uma empresa de biotecnologia, a Blue Heron – era filha de uma nova era. Da biologia sintética. “É a primeira espécie do planeta que se autorreplica cujo pai é um computador”, afirmou o ousado pesquisador-empresário, que, anos atrás, já havia se tornado famoso ao liderar um projeto privado de sequenciamento do genoma humano capaz de rivalizar (e acelerar) o trabalho feito pelo consórcio público.
A alusão à máquina como o pai da bactéria não é gratuita. Afinal, as informações necessárias para fabricar um genoma, na forma de uma enorme sequência de bases químicas (A, C, T e G), ficam guardadas em computadores. No caso da variedade natural da bactéria M. mycoides, trata-se da se­quência composta de 1,08 milhão de pares de bases (com cerca de mil genes) presentes em seu único cromossomo. Foi com essa receita química que se fez, em laboratório, uma cópia sintética do DNA natural da bactéria, seguindo uma série de especificações da equipe do J. Craig Venter Institute (JCVI), instituto fundado por Venter. O genoma não foi sintetizado como uma única grande sequência de DNA, mas em mais de mil pequenos pedaços. O conjunto de fragmentos foi inserido numa levedura, onde foram reunidos e retomaram a forma do cromossomo. Por fim, os cientistas retiraram o genoma sintético da levedura e o transplantaram para as células de uma outra bactéria, a Mycoplasma capricolum
O cromossomo artificial conseguiu tomar o controle das células receptoras, que passaram a produzir todas as proteínas típicas da M. mycoides. Dois dias após o transplante, as células deixaram de conter o DNA original da M. capricolum (seja porque ele foi destruído ou diluído no processo de replicação) e apresentavam um único tipo de material genético, o cromossomo sintético da M. mycoides. Em toda essa operação (ver infográfico na página 46), apenas 14 genes sem muita importância da M. mycoides se perderam ou foram anulados. “Trata-se de um avanço tanto filosófico como técnico”, disse Venter, resumindo, a seu ver, as implicações da empreitada.
Ápice de um esforço que consumiu US$ 40 milhões e quase 15 anos de pesquisa de um time de 24 pesquisadores do JCVI, entre os quais Ham Smith, Prêmio Nobel de Medicina em 1978, o surgimento da linhagem de bactéria com genoma sintético foi elogiado por cientistas de todo o mundo. Alguns preferiram situar o trabalho, que foi publicado eletronicamente na revista científica Science, como um grande feito tecnológico, uma mudança de escala na capacidade de o homem modificar o DNA de organismos, mas não como uma revolução científica. Outros pesquisadores, embora reconheçam o caráter técnico da empreitada, salientam que o trabalho tem, sim, relevância para a ciência. A visão de três desses cientistas está publicada em artigos especialmente escritos para esta edição de Pesquisa FAPESP, entre as páginas 47 e 51.
O biólogo Fernando Reinach não tira os méritos científicos do experimento de Venter. Segundo ele, o trabalho é a prova cabal de um conceito, o de que a matéria viva não tem nada de especial e também está submetida às leis da química e da física. Apenas com a informação do DNA é possível recriar um genoma e, por tabela, uma forma de vida. “Isso todo mundo já sabia em tese, mas faltava alguém demonstrar na prática essa teoria amplamente aceita”, afirma Reinach. “Depois da publicação do genoma humano, o trabalho de Venter é o de maior relevância que saiu. Não há por que tentar relativizar sua importância”, diz José Fernando Perez, presidente da Recepta Biopharma e diretor científico da FAPESP entre 1993 e 2005. “Ele coroa todo um esforço de entendimento científico do DNA. Os grandes avanços científicos não vêm de grandes ideias, mas de feitos tecnológicos.” Reinach também salienta um segundo ponto importante, igualmente de ordem científica, que emerge da análise do artigo na Science. Até agora, a vida sempre foi vista como algo contínuo. Todo ser descende de outros organismos semelhantes que viveram no passado. “O trabalho de Venter demonstra que a vida pode ser interrompida e reiniciada”, afirma Reinach, fazendo alusão ao fato de que a bactéria não tem ancestrais biológicos, é fruto da sequência de letras químicas armazenadas num computador.
A geneticista Mayana Zatz, coordenadora do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), comparou a repercussão causada pelo trabalho de Venter a um episódio semelhante ocorrido há 14 anos. “Esse feito me lembrou da clonagem da ovelha Dolly, por Ian Wilmut, em 1996. Os dois causaram uma revolução midiática”, escreve Mayana num artigo publicado na página 47.
Grande parte do financiamento das pesquisas do JCVI vem da Synthetic Genomics Inc (SGI), empresa fundada por Venter que fez 13 pedidos de patente sobre métodos usados nos trabalhos com biologia sintética. Venter diz que o experimento com a M. mycoides vai permitir desenhar microrganismos úteis ao homem, capazes de, por exemplo, produzir vacinas e biocombustíveis. A empresa petrolífera Exxon já se comprometeu a investir US$ 600 milhões na SGI para o desenvolvimento de algas que consigam produzir etanol.
Segundo a geneticista Lygia da Veiga Pereira, da USP, Venter terá muito trabalho pela frente para exercer a biologia sintética em sua plenitude. “O maior desafio será desenhar um genoma totalmente novo e escolher que genes serão colocados para que um organismo desempenhe uma determinada tarefa”, diz Lygia. Ainda que os esforços do cientista americano demorem para gerar frutos palpáveis, a simples presença no ambiente de pesquisa de um sujeito como Venter, polêmico e provocativo, sem dúvida, é vista como salutar por alguns de seus pares. “Para entender Venter, eu costumo pensar no ser humano como uma criança, uma criança largada numa sala bem grande chamada mundo. Ela fica mexendo em tudo, às vezes se queima ao colocar o dedo numa tomada, mas outras vezes acaba descobrindo como subir numa cadeira para alcançar as guloseimas lá em cima”, escreve João Meidanis, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em artigo na página 48.



> Artigo científico
GIBSON, D.G. et al. Creation of a bacterial cell controlled by a chemically synthesized genome. Science. publicado on-line em 20 mai. 2010.

Disponível em: http://www.sciencemag.org/cgi/content/full/329/5987/52/F5

Um comentário:

  1. Naiane Rocha, que bom que está continuando as postagens!
    Boa sorte!
    Marcos Vieira

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